A Fotografia e o Lugar em Rogério Ghomes
Marco Antônio Vieira
Fevereiro / 2024
Antes, talvez
Talvez busque um lugar onde já estou latitude: -15.7801, longitude:- 47.9292 15° 46’48’’sul, 47°55’45’’oeste BSB, (2024)
Acrílico, plotter de recorte, 90 x 60 cm edição 1/3 + 2 PA
Em Talvez busque um lugar onde já estou - latitude: -15.7801, longitude:- 47.9292 15° 46’48’’sul, 47°55’45’’oeste, mostra individual de Rogério Ghomes, a fotografia aspira à condição de ‘pele’ do mundo. Película que compartilha a natureza mesma de uma membrana, espécie de casa ovípara de uma superfície que em muito ultrapassa qualquer função representacional para abraçar sua condição de vestígio corpóreo de uma espaço-temporalidade que se risca no artefato imagético: cópula entre o quê e o quando que revela a verdade do fotográfico, mesmo, e sobretudo talvez, nos momentos em que tudo é explícito artifício retórico.
Nas obras que aqui se veem, a função indiciária do advento fotográfico, a saber, sua incepção histórica como evidência documental, risco luminoso e cicatricial de um signo que remonta ao acontecimento em sua capacidade, não apenas de remeter àquilo que se ‘captura’ mas sobretudo de ‘reter’ algo daquilo que o ocasiona, é constitutivo da poética de Ghomes, não somente porque estrutura mas igualmente porque provocativamente se desfaz. É nesta apenas aparente contradição que esses trabalhos e essas imagens fundam aquilo que os estrutura como pensamento poético.
O título que nomeia essa exposição é uma veemente afirmação da espacialidade que encerra o acontecimento estético, aquilo que Hans Gumbrecht (2010) define como ‘produção de presença’, em que algo literalmente ‘tem lugar’.
Talvez busque um lugar onde já estou - latitude: -15.7801, longitude:- 47.9292 15° 46’48’’sul, 47°55’45’’oeste assumese como ‘evento’, encapsulado pela constituição de um ‘lugar’, cuja inalienável ‘acontecência’ inscreve-se geográfica nos indícios latitudinais e longitudinais que integram o nome que o artista concede à exposição, à maneira de um subtítulo, que situa o enlace entre obra e sua fruição, a partir de sua geolocalização.
A obra ‘acontece’ nos limites espaçovisuais do local que a recebe a partir de como o olho do corpo de quem a vê, a elaborará como entidade de significação e a viverá sensorialmente, o que acaba por implicar um complexo redimensionamento das relações espaçotemporais, tanto no que concerne à genealogia, quanto aos efeitos da obra, impedindo que a compreendamos a partir da fixidez de um ‘tempo-lugar’.
O que comanda Talvez busque um lugar onde já estou-latitude: -15.7801, longitude:- 47.9292 15° 46’48’’sul, 47°55’45’’oeste como evento expositivo amalgama temporalidades pretéritas e presentes, cuja atualização no ‘tempoagora’ da mostra inscreve-se antes no modo como Ghomes concebe a razão de ser de suas imagens e objetos.
Que o fotográfico implique desde sempre a questão do tempo do signo, do tempo da imagem, ou antes ainda, da imagem em sua significação temporal aparenta a quase auto evidência. O que nos parece carente de entendimento é que algo do ‘lugar’ que encerra o ato fotográfico inscreve-se, ele também, na imagem resultante. O fotográfico é, pois, o ‘lugar de um acontecimento’ e afirma-se assim em sua constituição sígnica espaço-temporal.
A Pele da Imagem ou a Significação do Lugar em Rogério Ghomes
Talvez busque um lugar onde já estou- BSB (2024) abre a mostra da Referência e sinaliza material e semanticamente a centralidade da função operatória que a ideia de ‘lugar’ e suas modulações figurativas desempenham na poética de Ghomes.
Doravante, todas as exposições do artista serão nomeadas identicamente e o lugar no mundo que as recebe se inscreverá no título por meio dos indícios de suas coordenadas geográficas.
Nos limites dessa mostra, ‘lugar’ é a um só tempo o local que recebe a exposição e no qual se desenrola a cena de sua teatralização estética, implicando quem a adentra. É igualmente aquilo que a experiência fotográfica, vinculada à posição escópica (relativa ao olhar) de um observador que enquadra o que se destina à translação fotográfica e assim arrasta consigo, na pele em que se inscreve aquilo que se converte em imagem, o lugar que se ocupa no espaço irremediavelmente atrelado ao momento e ao local que se captura luminosamente aquilo que a imagem dá a ver. É, por fim, o instante do ato fotográfico, em que se entrelaçam indissociáveis tempo e espaço.
Em Talvez busque um lugar onde já estoulatitude: -15.7801, longitude:- 47.9292 15° 46’48’’sul, 47°55’45’’oeste, ‘lugar’ é índice de um rigoroso desfazimento. Sua dissolução se desenrola como figura que se deixa ver a partir dos efeitos de luz cambiantes que a modulam uma e várias a um só tempo. Há instabilidade e desestabilização no modo como a ‘figura do fotográfico’ se mostra mesma e outras: o que se vê, ao mesmo que afirma sua ancoragem física, indiciária e sólida, migra rumo à apropriação de inspiração pictórica em seus mecanismos de modulação cromática.
A rigor, o que aparenta estar em jogo aqui é a possibilidade do exercício de instalar no fotográfico o elemento da incerteza sensível do vivido, daquilo que torna o que se vê, ‘olhado’ e, portanto, diretamente implicado na experiência corpórea do sujeito vidente.
A imagem fotográfica só pode, neste sentido, esforçar-se por incorporar indícios daquilo que a pode revelar como algo cuja existência no mundo é índice de sua inalienável fisicalidade, ao mesmo tempo em que sua estabilidade como signo encontra-se sob ameaça. Sua significação é, pois, permanentemente adiada, diferida, refeita, desfeita, em curso.
É, pois, a partir da mais exata compreensão das implicações aí atuantes que, ‘no lugar’ e ‘do lugar’ de onde se vê o que essa mostra dá a ver, que a fotografia é aqui a um só tempo afirmação e ressignificação de sua história como artefato imagético, ciente daquilo que a caracteriza como um capítulo definidor das complexas relações que a invenção do fotográfico impôs para o pensamento em torno da imagem e as considerações constantes do contexto espaçovisual que encerra sua emergência e especificidades inalienáveis como fenômeno e acontecimento imagético.
Hotel MGA I (2024)
Impressão pigmento mineral sobre papel Aquarelle Rag 310g/m, 75 x 50 cm edição 1/7 + 2 PA
Hotel MGA II (2024)
Impressão pigmento mineral sobre papel Aquarelle Rag 310g/m, 75 x 50 cm edição 1/7 + 2 PA
Hotel MGA III (2024)
Impressão pigmento mineral sobre papel Aquarelle Rag 310g/m, 75 x 50 cm edição 1/7 + 2 PA
Sobre aquilo que aqui se vê
Nunca me lembro de esquecê-lo (2013)
Impressão pigmento mineral sobre papel Rag Photographique 310g/m, 100 x 150 cm edição 1/7 + 2 PA.
A fotografia, em Ghomes, acata a intervenção que a transmuta e modula visual e esteticamente. Tudo que constitui as névoas que tornam a paisagem da memória, a distância temporal que aparta o instante fotografado e aquilo que é capaz de evocar em quem o fotografou e em quem com ele depara como observador só pode dar vazão à transmutação do passado em objeto da mais radical reinvenção poética, o qual fornece os momentos de uma verdadeira deriva estética. O referente (o ‘real’ que se fotografa) inexiste exceto como a mais turva e nebulosa fabulação.
Não à toa, é a figura do hotel, em Hotel (2024), a encarnar não apenas o lugar ( o local ) que se fotografa mas igualmente de onde se o fotografa (o ângulo que enquadra e organiza o campo espaço-visual), daí que a imagem se torne decididamente outra em relação aquilo que se capturou, sublinhando a dúvida quanto à aparente fidedignidade documental historicamente associada à tradição fotográfica, conduzindo-nos à incerteza referencial a partir de seus travestimentos estéticos em que os filtros usados pelo artista emprestam explícita artificialidade às imagens a um só tempo capturadas e forjadas. O signo fotográfico é, pois, trânsito.
Nunca me lembro de esquecê-lo (2023)
Impressão pigmento mineral sobre papel Aquarelle Rag 310g/m, 100 x 150 cm edição 1/7 + 2 PA.
Hotel MGA I (2024) Impressão pigmento mineral sobre papel Aquarelle Rag 310g/m, 75 x 50 cm edição 1/7 + 2 PA Hotel MGA II (2024) Impressão pigmento mineral sobre papel Aquarelle Rag 310g/m, 75 x 50 cm edição 1/7 + 2 PA Hotel MGA III (2024) Impressão pigmento mineral sobre papel Aquarelle Rag 310g/m, 75 x 50 cm edição 1/7 + 2 PA Em Nunca me lembro de esquecê-lo (2013 & 2023), a captura da imagem das Cataratas do Iguaçu (PR) pelo artista em duas ocasiões distintas (separadas pelo hiato de uma década), para além do arrebatamento que a visão dos efeitos visuais que vertigem dos volumes d’água que se precipitam formando espuma e névoa que se congelam como escultura na imagem fotografada em uma visão da branquidão mais intensa na imagem de 2023, ou então dessa espessa montanha nevada cujos tons oscilam entre distintas matizes nacaradas saltam aos olhos contra um fundo azulado que se deixa atravessar pela iridescência de um arco-íris na fotografia de 2013, o que igualmente se articula é uma complexa reflexão em torno da mesmidade/ alteridade de uma captura fotográfica.
Em distintos momentos de sua investigação das potencialidades poético-teóricas da imagem fotográfica, Ghomes explora o que significa ver o ‘mesmo’ como ‘outro’, a partir da tensão entre imagens supostamente idênticas, em que o signo da diferença se instala quase imperceptível e complexifica o jogo proposto de ver o ‘mesmo’ duplicado, como em Todos precisam de um espelho para lembrar quem são, série fotográfica de pares de imagens de 2007. O ‘mesmo’, nesse jogo de tensões relacionais, só pode significar visual e discursivamente uma vez que seu reconhecimento como ‘mesmo’ se dê a partir das insuspeitadas relações que o jogo da significação impõe como contínua diferença, como nos ensina Jacques Derrida (2000).
O distanciamento temporal que estranhamente separa e une as duas imagens das Cataratas do Iguaçu assume-se aqui como índice da diferença mais radical e vê-se então o ‘outro’ no ‘mesmo’. Que se evoque aqui o texto de Martin Heidegger, Heráclito (1998), em que as tensões entre mesmidade e alteridade são devidamente aprofundadas não nos pareceria fortuito.
Se, em Ghomes, o fotográfico é trânsito de um nomadismo, o que apontaria para sua instabilidade, ao mesmo tempo que paradoxal afirmação da centralidade do lugar, a partir das modulações metafóricas e metonímicas que a ideia de ‘lugar’ ocupa em sua poética, essa característica nômade de um lugar que é temporalmente atado ao ‘agora’ da experiência estética, como nos instrui Gumbrecht, é igualmente absorvido pela película da imagem para que o vivamos como um ‘agora’ que é lampejo do tempo de outrora daquilo que retém a imagem.
Uma tal instabilidade no que diz respeito à certeza espaço-temporal da imagem só pode manifestar-se como uma espécie de ‘desvio’ na função representacional historicamente assentada da imagem fotográfica e, portanto, na série Entre Ver (2023 & 2024), a imagem resultante é explícito arranjo retórico, manipulação técnica e sígnica, puro desejo de infringir fronteiras artísticas e contaminar a ‘pureza’ dos suportes e linguagens preconizados pela concepção modernista da quintessência dos mecanismos intransferíveis que caracterizariam a pintura e a escultura ocidentais.
Nestas imagens, a cor assume um protagonismo concebido de modo até então inexplorado por Ghomes: às paisagens urbanas parcialmente veladas por cortinas dos hotéis em que se hospeda o artista em distintos locais, acrescentam-se blocos cromáticos geometrizados que emprestam às composições resultantes um equilíbrio tensional entre abstração e figurativismo, entre mimetismo duplicativo e devidamente desviado e proposição poética do mundo olhado.
Entre Ver sinaliza o estado atual das explorações do artista, em que lições inspiradas pela pintura abstrata, em suas complexas modulações cromáticas, empurram os limites do trabalho fotográfico rumo à contaminação fronteiriça. Veem-se entrelugares interartísticos, ao mesmo tempo em que se entrevê o signo referencial velado pela transparência têxtil das cortinas
Entre ver – REC (2023)
Impressão pigmento mineral sobre PhotoArt Pro Canvas Matte 395 grs. 100 x 100 cm / edição 1/7 +2 PA
Entre ver - AEP (2023)
Impressão pigmento mineral sobre PhotoArt Pro Canvas Matte 395 grs. 100 x 100 cm / edição 2/7 +2 PA
ViVAViDA (2024)
Impressão pigmento mineral sobre papel Aquarelle Rag 310g 310g/m, plotter de recorte, 160 x 210 cm. Edição 1/3 + 2 PA
Como em outros momentos da produção de Ghomes, o signo verbal assume uma importância inequívoca em Talvez busque um lugar onde já estou-latitude: -15.7801, longitude: - 47.9292 15° 46’48’’sul, 47°55’45’’oeste, não apenas pela insistente provocação que os títulos das obras e de suas exposições instauram como interpelação ao trabalho de elaboração e apreciação críticas de sua produção, argumento exemplarmente desenvolvido em Nominalisme Pictural (1984), mas igualmente pela possibilidade mesma de explorar a dimensão eminentemente visual das letras do alfabeto em sua materialidade plástica. Ecos verbivocovisuais (Araújo, 2012) insistem em VIVAVIDA (2024), aproximando Ghomes de faturas poético-visiuais concretistas e neoconcretistas.
Compotas Afetivas (2024) instalação, 24 objetos de vidro, tipografias, plotter de recorte 160 x 40 x 70 cm. Em seu interesse pelo jogo tensional que a palavra encerra, Ghomes exercitase em um para-além da territorialidade associada ao fotográfico, para em suas Compotas Afetivas (2024), isolar as letras que compõem os significantes que integram a obra como inspiração que se toma de empréstimo do título do texto Vigiar e Punir, de Michel Foucault. As letras agora refletem a luz e a um só tempo significam e confirmam-se igualmente como puro traço, inscrição e rastro que produz sentido e surte efeitos sensórios pela afirmação de sua materialidade escultórico-visual.
Em Talvez busque um lugar onde já estou-latitude: -15.7801, longitude: - 47.9292 15° 46’48’’sul, 47°55’45’’oeste, a gangorra balança fertilmente indecidível (Derrida, 2005), entre o aqui e o agora e o antes e o depois. O ‘lugar’ resulta assim poeticamente indeterminável e enlaça artista, obra e observador em um instável e produtivo jogo de significações, em que as intensidades estéticas perturbam pretensas estabilidades ou muitas das certezas categóricas acerca dos lugares outrora ocupados pela imagem fotográfica, pelas categorias muitas vezes rígidas longamente cultivadas por determinadas correntes da teoria e pela história da arte, pelas tensões entre produção de sentido (interpretação), fincada na história, e produção de presença (vivência estética), instalada no ‘agora’ do que se vive aqui no espaço da galeria.
A luz deste lugar ofusca e cala. Depois daqui, voltaremos a ver e a falar.
Compotas Afetivas (2024)
instalação, 24 objetos de vidro, tipografias, plotter de recorte 160 x 40 x 70 cm.
Referências:
ARAÚJO, Ricardo. Poesia Visual Vídeo Poesia. São Paulo: Perspectiva, 2012. DE DUVE, Thierry. Nominalisme picturalMarcel Duchamp, la peinture et la modernité. Paris: Minuit, 1984. DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução de Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 2000. ____________________. A farmácia de Platão. Tradução de Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 2005. GUMBRECHT, Hans. Produção de Presençao que o sentido não consegue transmitir. Tradução de Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010. HEIDEGGER, Martin. Heráclito. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998.